A FAMÍLIA

"É preciso fazer realmente todo o esforço possível, para que a família seja reconhecida como sociedade primordial e, em certo sentido, soberana. A sua soberania é indispensável para o bem da sociedade. Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história. A família está no centro de todos estes problemas e tarefas: relegá-la para um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro". (João Paulo II em “Carta às Famílias” / 2 de fevereiro de 1994)

01 novembro 2014

Solilóquio

UM SOPRO, UMA BRISA 

Que falta nos fazem hoje as rezas de Nhá Miúda!... 

       Sapinho, quebranto, soluços, mau olhado... nada havia que resistisse às rezas e benzeduras de Nhá Miúda. Para mordida de cobra, picada de escorpião, mijada de aranha, espinha de peixe atravessada na garganta, o tratamento era reforçado com chás e ferveduras que só ela sabia fazer, guardiã que era de segredos herdados de gerações imemoriais.

       Nhá Miúda tinha também outras habilidades, como a de parteira. Chamava de “meu fío” e “minha fía” a todos aqueles a quem suas mãos hábeis e carinhosas ajudaram a vir ao mundo. E contavam-se às dezenas. Não havia hora, nem mau tempo, nem distância, que servissem de empecilho para que ela exercitasse seu trabalho abnegado.

       A fama de boa cozinheira corria de boca em boca. Embora não sendo comum receber visitas, com frequência comentava-se que fazia bolos de milho, carne de panela e ambrosias “com mãos de fada”.

       Ninguém sabia que idade tinha. Apesar dos passos lentos e das costas levemente recurvadas, o que a obrigava a apoiar-se se num velho bastão de madeira à guisa de bengala, estava sempre em atividade. Percorria, sem cansaço aparente, longos trajetos, que mesmo para os mais jovem já seriam exaustivos.

       Cena comum era vê-la carregando uma cesta repleta de laranjas e bergamotas que distribuía prazerosamente a todos os que pelo caminho ia encontrando. Não vendia. Dava-as de presente, apenas. Colhia-as do pomar que ela mesma cuidava e cultivava, no vasto quintal onde se erguia a velha casa onde morava solitária e tranquila em sua vida pacata e sem outras atribulações que não fossem as chamadas para socorrer alguma parturiente da vizinhança.  

       Pouco conversava e sobre a família, suas origens, seu passado, jamais falava, talvez porque as pessoas não ousavam perguntar. Sentiam receio de intrometerem-se em assunto que não lhes dizia respeito. Negra, poderia ter sido escrava. Quem sabe não o fora?!... Ama-de-leite... sim, poderia ter sido. Ou aia de uma dama nobre, de alguma rainha... Ela mesma, embora a idade e a postura um tanto comprometida, tinha porte de rainha! Teria sido rainha? Onde andariam e quem teriam sido os seus súditos?

       A casa em que vivia não se assemelhava muito a um palácio. Pouco melhor do que um casebre, mesmo assim era limpa, bem arrumada, com os móveis apenas suficientes para as suas necessidades. Não era a proprietária, e supunha-se ser de um filho que ninguém jamais vira nem sabia ao certo quem era ou se alguma vez existiu. Bondosa, possuidora de extrema simpatia, rosto onde predominavam os traços de antiga beleza, seu olhar era franco e inspirava confiança e respeito. Guardava muitos segredos, não somente sobre a própria existência, como acerca das pessoas que conhecia e com as quais se relacionava.

       De quantas histórias teria sido testemunha, ou protagonista, ou a personagem principal?!...

       ...

       São passados muitos anos e agora, não sei por que, a lembrança de Nhá Miúda me veio à mente. Assim. De repente. Sem mais nem menos.  

       Posso dizer que a narrativa que fiz é tudo o que registra, pelo menos em minha memória, a passagem dessa mulher misteriosa em alguns capítulos esparsos de minha própria história. É a história singela e sutil, quase um sopro, uma brisa, de quem, como, ela, se perdeu, anônima, nas brumas de um pretérito quase perfeito, não fosse o seu súbito ressurgimento.

       Quem seria, na verdade, Nhá Miúda? Que nome teria?!... Josefa, talvez... Ou Genoveva. Ou Anastácia? Quem sabe...  Augusta? Sim, Augusta! Por que não me ocorreu, antes? Combina muito com ela – nome de rainha.

       Quando a vi pela última vez eu não era nem adolescente. Teria uns dez, onze anos... Não mais. Menos, possivelmente. A vida sofreu uma ruptura tão instantânea, que eu não percebi  que Nhá Miúda, numa fração de segundo, deixou de fazer parte de uma história que nunca teve início, pois não sei situá-la no tempo. E que, não tendo meio, nem continuidade, também não teve fim. Ficou suspensa, atemporal, em algum lugar de nossas origens, à espera de que algum dia ressurja ainda que envolta por tênue luminosidade.

Vando

* * *

Foto: do site “IMPRENSA BR” 

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